Canudos renascida das cinzas e das águas
A cidade de Canudos completará 36 anos neste 25 de fevereiro de 2021. Elevado à categoria de município pela lei estadual nº 4405, de 25 de fevereiro de 1985, o município foi desmembrado de Euclides da Cunha. Como todos os municípios criados naquela época, foi instalado 1º de janeiro de 1986. Além da sede, Canudos tem um distrito: Bendengó, localizado no cruzamento das rodovias Br 116/235. Por mais que cresça e se desenvolva, a cidade jamais se apartará da sua relação umbilical com a Guerra de Canudos e com Antônio Conselheiro. Não é pouco dizer que o município é um ícone, talvez o maior, do turismo histórico-cultural da Bahia.
O local original do nascimento da povoação está sob as águas do açude de Cocorobó. Antônio Vicente Mendes Maciel, o conhecido Antônio Conselheiro, enfincou o seu cajado nas margens do vaza-barris e disse aos seus seguidores que ali construiriam suas moradas. Havia poucas casas de taipa no local e uma fazenda que lhe deu guarida, a fazenda Canudos. O nome nasce da planta que fornecia um caule oco usado para pitar fumo, encontrado em grande quantidade no lugar. Era o ano de 1893. O cearense de Quixeramobim já passava dos 60 anos. Estava alquebrado por pregar a palavra de Deus naquele sertão, além de recuperar igrejas, cemitérios e gritar contra a República.

Graças ao modo de vida ao qual eram submetidos os sertanejos, fadados à ignorância, ao trabalho em quase escravidão, aos períodos de secas inclementes e ao tratamento dispensado por fazendeiros, a pregação de Conselheiro virou norte, luz no fim do túnel, lâmpada que iluminava o caminho para uma vida melhor. Rapidamente Canudos, chamada pelo pregador de Belo Monte, cresceu muito. Chegou a ser a segunda maior população urbana da Bahia, com algo em torno de 25 mil habitantes. Euclides da Cunha, em Os Sertões, chegou a chama-la de urbes monstruosa. A elite política e econômica ficou assustada. Os ecos a favor da monarquia e, principalmente, a falta de braços para tocar as fazendas dos grandes latifundiários, assustavam potencialmente.
Numa República que não dialogava, atendendo a apelos dos fazendeiros, decidiram que Canudos era um problema. Era preciso mostrar força. Aproveitaram o momento em que Conselheiro queria cobrir a maior igreja construída por ele. A primeira igreja de Canudos era pequena e não mais suportava tantos fiéis. A madeira comprada em Juazeiro, e não entregue pelo comerciante já orientado pelo governo, gerou a 1º Batalha comandada pelo Tenente Pires Ferreira. Os 104 homens, depois de esperar em vão a dita invasão ao Juazeiro, em outubro de 1896, resolveu ir até Canudos. Foram recebidos em Uauá no dia 24 de novembro daquele ano pelos conselheiristas. A batalha durou algo em torno de 4 horas e Pires Ferreira retornou a Juazeiro.
A retirada foi considerada como derrota e os jornais começavam a questionar a força do governo e da república. Um exército que não conseguia vencer homens armados apenas com paus, pedras, foices, facões e espingardas de matar passarinho, era apenas um arremedo de força militar. Antônio Conselheiro preparava seu povo para um segundo fogo, um terceiro e entregava o quarto nas mãos de Deus. O comandante da 2ª batalha foi o major Febrônio de Brito. Contava este com 250 homens do exército, mais 300 milicianos. O encontro de forças se deu no dia 18 de janeiro de 1987, antes da chegada a Canudos, no vale da morte. Em um dia de luta, mais de 100 soldados tombaram. Os conselheiristas já tinham algumas armas do primeiro combate e esperavam os inimigos em tocaia. A retirada foi inevitável. O governo Prudente de Morais se desmoralizava. Homens nordestinos, completamente despreparados para a guerra, apenas movidos pela fé, derrotavam o Exército da maior nação da América do Sul.
Só que o destino de Canudos estava traçado e, no meio do caminho, aparece o herói da Guerra do Paraguai, o temido coronel Moreira César, que adorava cortar a cabeça dos seus inimigos vencidos. A ordem era destruir Canudos para sempre. Moreira César chegou ao alto da favela às 11 horas da manhã do dia 4 de março de 1897 e, sem sequer acampar e dar descanso aos seus 1.300 soldados, vendo aquele arraial que aparecia bem menor que inimigos de outras batalhas, resolveu atacar e disse que almoçaria em Canudos. Na noite daquele dia, o militar mais ilustre de Pindamonhangaba, em São Paulo, morria baleado. Dizem que foi tiro certeiro do pernambucano Pajeú, que liderava os conselheiristas naquela batalha. Um baiano de Inhambupe, coronel Tamarindo, assumiu o comando e ordenou a retirada na madrugada do dia 5, quando também foi abatido no vale da morte. A 3ª expedição foi um novo fracasso do já não temido Exército Brasileiro.
Mas as profecias de Antônio Conselheiro seguiam certa lógica. Uma cidade não pode enfrentar um país inteiro. Por mais que incompetente sejam seus administradores, há sempre alguém que pensa e não desafia o processo natural das coisas. A 4ª Expedição teria que vencer de forma inquestionável. A vitória veio, mas o questionável se impôs. Sob o comando do General Artur Oscar e o apoio do General Savaget, contando ainda com toda logística do Marechal Carlos Machado Bittencourt, que veio em agosto para a região, Canudos não resistiu aos inúmeros combates. O ministro da guerra começou a preparar tudo em abril daquele ano fatídico de 1897. De primeira, enviou 3 mil homens com Artur Oscar. Outros 2 mil seguiam com Savaget por Sergipe. Outros reforços vieram depois das primeiras batalhas. Em 27 de junho tentaram invadir Canudos e uma longa batalha foi travada. Uma carnificina. Artur Oscar foi salvo por Savaget e os combates continuaram. Canudos foi cercada para impedir qualquer ajuda de fora. Não tinha condições nem de aparecer na beira do rio para pegar água.
No dia 22 de setembro morria Antônio Conselheiro, vítima de disenteria. Canudos perdia o seu líder maior. Outros líderes importantes já tinham morrido ou desapareceram: Pajeú, João Abade, Pedrão, Joaquim Macambira. Agora estava tudo nas mãos de Antônio Beatinho. Este chegou a se entregar e confiou na palavra do General Artur Oscar. No dia 2 de outubro de 1897, pela noite, 150 pessoas eram degoladas com Beatinho. Os que não confiaram no general continuaram lutando até a última centeia de vida. Os últimos quatro guerreiros de Canudos morriam dia 5 de outubro. A cidade foi destruída pelo fogo. Os poucos que sobraram foram reunidos e couberam numa só fotografia de Flávio de Barros.
Problema resolvido após mais de 25 mil vidas ceifadas? Talvez para o Estado, para o Exército, para os que mandam. Destruíram canudos e não resolveram os problemas sociais da região. As sementes que ficaram largadas na caatinga novamente se juntaram e, no mesmo local, reergueram suas casas. Quem sobreviveu e foi jogado para o canto tinha que continuar a vida. Nasce a segunda Canudos. Nos anos 50 já era uma comunidade de mais de 5 mil almas. As condições sociais não eram muito diferentes, mas tinha o Vaza-Barris e a fé disseminada por Antônio Conselheiro. No final dos anos daquela década, resolveram fazer uma barragem enorme para que o sertão virasse mar. As águas encobririam Canudos. Em 1969, depois de mais de 10 horas de intensa chuva, o açude de Cocorobó transborda e destrói a segunda Canudos. Desta vez sem derramamento de sangue, apenas de lágrimas. Algumas casas foram cedidas aos moradores que puderam provar suas propriedades. Estavam localizadas próximas à barragem, cerca de três léguas depois.
As casas mais distantes onde ficava a velha Canudos, que não foram alcançadas pelas águas, continuam lá e hoje formam o povoado de Canudos Velho. As novas casas foram formadas na fazenda Cocorobó, na barragem. Embora chamassem o vilarejo com o nome da fazenda, fizeram nascer ali a terceira e atual Canudos. Com cerca de 17 mil habitantes, localizada à margem da BR 235, tem possibilidades enormes de ser o principal polo turístico do sertão baiano. Hoje é possível andar por todo o palco da guerra, no Parque Estadual de Canudos, mantido pela UNEB – Universidade Estadual da Bahia. O roteiro tem cinco quilômetros e é preciso um pouco de fôlego, mas passa por pontos estratégicos das batalhas do século XIX. No ponto mais alto do parque, tem lugar um marco pela Guerra de Canudos, onde está fincado um grande cruzeiro no Alto da Favela.
Além das ruas modernas, com avenidas em asfalto, centro médico, comércio desenvolvido e forte agropecuária, não se pode ir a Canudos sem visitar o Memorial Antônio Conselheiro, com interessantes informações sobre a guerra. Lá é possível encontrar imagens e objetos achados por pesquisadores no Parque Estadual, desde munições, projéteis e fragmentos de granadas, dentre outros objetos da época. Também há estudos sobre vestígios de ocupação pré-história na região. No Museu Histórico de Canudos há também relíquias da guerra e outras informações que não são encontradas nos livros. Além disso, há o Mirante do Conselheiro e o pequeno balneário do açude Cocorobó. Em alguns anos, quando as águas do Cocorobó ficam baixas, é possível avistar a torre da Igreja da 2ª Canudos ou até chegar ao local.
Apesar de estar comemorando 36 anos de emancipação, Canudos guarda na sua memória cultural 128 anos de intensa história, marcados a ferro, a sangue, a pólvora, pelo desleixo de autoridades, por um bruto e injusto sistema econômico, por uma relação de amor e ódio com a natureza e com o estado. Mas como o sertanejo de Canudos resiste, a ponto de renascer das cinzas e das águas? É que o homem nordestino, sertanejo, canudense é uma fortaleza em si mesmo, movido pela fé. Sabe ele que nem sempre é possível vencer, mas que importante é acreditar e seguir em frente. Já que todos nós estamos aqui, não tem sentido entregar os pontos e abandonar a possibilidade de felicidade, mesmo que ele seja apenas um ponto fora da curva e dure pouco mais que um segundo.